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A vida que imaginamos é uma casa transparente sem janelas nem saídas.
A gente a constrói com palavras e silêncios, abraços e afastamentos, uma vida paralela a isso que parece o concreto cotidiano. Ali o amado não entra, a amada fica de fora, sombras e luzes como espectros dançam e acenam. Fora dessa casa de vidro existe outra vida, que chamamos real. Com pão e manteiga, aroma de café, lençóis úmidos de sexo, filhos correndo, pais envelhecendo, contas a pagar, cargos a ocupar, nomes e marcas e tráfegos e sonhos e consumo, e sonhos de consumo.

E dor.

Lya Luft, O tigre na sombra

Neste anos de 2013, a seção Arte é… da Revista Evidência    terá como tema central  a produção artística brasileira dos séculos XX e XXI.  Artistas  que fizeram  e ainda fazem história representam as mais diversas artes: música,  cinema, literatura, teatro, artes plásticas. Com eles,  o leitor poderá navegar pelo cenário artístico  da contemporaneidade a partir de textos que desvendam, pelas mãos dos colunistas Cimara Valim, Elen Oliveira e Eduardo Pereira Machado, os recantos da obra de artistas seletos para, assim, (re)descobrir o que há de melhor  na cultura nacional.

Para abrir o ano, iniciamos com a   escritora Lya Luft, que possui obras   apreciadas pela crítica literária e pelo público leitor. A seguir, confira  alguns trechos da matéria publicada na edição de janeiro/2013.  Para ler o texto na íntegra,  acesse http://www.revistaevidencia.com.br/artigos/edicao-1728408/185-arte-e4916.html.

Lya Luft

Descendente de imigrantes alemães, Lya Luft nasceu em Santa Cruz do Sul, em 1938. Suas raízes germânicas uniram-se à cultura brasileira ao longo de sua vida, seja pela soma de culturas que predominaram dentro do território familiar, seja pela de espaços por ela trilhados. A valorização da leitura fez com que, desde cedo, desfrutasse do prazer inerente ao mundo ficcional. Como tradutora, desde 1960, verteu para a Língua Portuguesa obras do inglês e do alemão de autores do cânone literário ocidental, a exemplo de Virginia Woolf, Thomas Mann, Doris Lessing e Günter Grass. Formada em Letras Anglo-Germânicas e Mestre em Linguística Aplicada (PUCRS) e Literatura Brasileira (UFRGS), atuou como professora de  linguística e literatura nas Faculdades Porto-Alegrenses nos anos de 1970.

O romance As parceiras (1980), sua obra de estreia, deu início a uma sucessão de narrativas longas centradas em conflitos interiores e dramas familiares representativos do mundo contemporâneo. Pertencem a esse grupo os romances A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), O quarto fechado (1984), Exílio (1987), A sentinela (1994), O ponto cego (1999) e O tigre na sombra (2012).

Em seu romance mais recente, O tigre na sombra, Luft mantém a exploração do universo interior, apresentando-nos os conflitos familiares sob a perspectiva de Dôda – ou Dolores – personagem marcada pelo problema físico que a acompanha ao longo da vida. A “menina da perna curta” enfrenta, muito mais que a dificuldade de caminhar, a rejeição de uma sociedade que não perdoa aqueles que não se ajustam aos seus padrões, exclusão vivida no próprio seio familiar. Em meio ao constante jogo de espelhos e sombras, o leitor vai se apropriando da trama que forma a narrativa, cuja chave está na incidência do duplo, seja pelo reflexo de Dolores nos espelhos; pelos contrapontos com a irmã Dália; pela presença de Deco, amigo imaginário; pelo simbolismo que paira no tigre que espera; ou pela presença constante do mar, no qual a narradora de visualiza.

Lya Luft é uma escritora de muitos caminhos. Em cada uma das veredas trilhadas, encontramos o absurdo, o grotesco e o impossível, mas também o ordinário, o terno, o cotidiano.

Concurso 2012

É dezembro, é Natal! Em meio à turbulência do mundo contemporâneo, renasce, através de narrativas repletas de elementos simbólicos, a luz dos mais belos sentimentos e, com eles, o espírito natalino. Um milagre silencioso toma conta da mente e dos corações daqueles que se empenham em (re)aprender a ver a si, ao mundo e às relações provenientes das relações humanas. “Aprender a ver”, como nos ensina Vitor Ramil em Satolep , passa a ser a chave para a vivência de experiências ao mesmo tempo sutis e profundas – experiências que podem ser encontradas nas (entre)linhas dos contos que tocaram a comissão julgadora neste concurso de contos.

                A seleção dos contos contou com o processo de avaliação às cegas, pelo qual os avaliadores não têm conhecimento da autoria dos contos avaliados nem da identidade dos demais julgadores. Após a leitura e a análise individual dos contos por cada membro da comissão, a partir dos mesmos critérios – relação com o tema proposto, originalidade, qualidade estética e correção gramatical – foi feita a contagem dos pontos pela Revista Evidência, e, finalmente, chegou-se ao resultado.

                Eis os contos selecionados, abaixo disponíveis na íntegra: “Os Natais de Helena”, de Jackson Felipe Reis (primeiro lugar); “Teodoro”, de Célia Silva Jachemet (segundo lugar); e “Coisas do coração”, de Tânia Beatriz Schreiber (terceiro lugar).

Boa  leitura!

Feliz Natal!

Os Natais de Helena

Por Jackson Felipe Reis

Jackson com a irmã Elisangela

Jackson com a irmã Elisangela

Quando o mês de dezembro se aproxima, Helena começa a recordar de seus Natais da infância. Não eram banquetes suntuosos, nem havia fartura de presentes e comilanças. Hoje ela observa seus filhos e netos decorando a casa, armando a árvore de Natal, mergulhando em prestações de lojas de roupas e brinquedos. Em sua infância, Helena não tinha aquelas comodidades. As preocupações dela e de sua família eram outras, e tinham razões muito diferentes.

Helena, seus pais e seus irmãos moravam em um casebre na beira de um riacho. Viviam basicamente daquilo que plantavam na horta do terreno ao lado, além do modesto emprego de balconista de bar do pai de Helena. O que ganhavam era gasto em roupas simples e comida pouca, e o restante era cuidadosamente economizado. Porém não eram miseráveis, nem nunca passavam fome.

            Helena hoje vê seus netos no Natal pedindo brinquedos de alta tecnologia, celulares de última geração, o mais novo modelo de computador ou o mais interativo dos videogames. As crianças querem presentes? Que mandem um e-mail ao Papai Noel e o que desejarem seus pais comprarão no cartão de crédito. Helena se entristece vendo esse ímpeto consumista em que o Natal se transformou. Lógico que ela quer ver suas crianças felizes e faria de tudo para alegrá-las. Mas Helena sente que as crianças precisam de algo mais, algo que lhes falta e que, na infância dela, por mais pobre e humilde, tinha um valor inestimável.

            Quando o pai de Helena voltava do trabalho com caixinhas coloridas nas sacolas, as crianças já se agitavam e festejavam, pois sabiam que a noite de Natal estava chegando e que seria uma noite cheia de alegria, doces e muito amor. Uma verdadeira noite feliz. O que havia nas caixinhas? Bem, algumas balas, caramelos, biscoitos, guloseimas que o dono do bar retirava do estoque devido à má aparência ou à validade próxima do vencimento. Mas não importava. O pai de Helena juntava pedaços de madeira no armazém e confeccionava, ele mesmo, aquelas singelas caixinhas, decoradas com tinta têmpera e muito afeto.

            Ao chegar em casa, sua esposa não lhe cobrava presentes para ela, pois apenas observar a felicidade dos filhos já a fazia sentir-se plena e satisfeita. Naquela noite, não havia peru nem panetone. Porém havia conversas animadas, contação de histórias, risadas, abraços, beijos e orações. As crianças não valorizavam mais os doces em si, mas o que eles representavam: o amor incondicional de seus pais e o desejo de ver os filhos contentes.

            Neste final de ano, Helena, seus filhos e netos viajarão à Europa para ver a neve e os castelos medievais. Em sua infância, seus passeios se resumiam a breves caminhadas na beira do riacho. Ela só via a neve em figuras de revistas e para ela castelos eram sonhos de contos de fadas em que ela era a princesa que tudo tinha e tudo podia.

            Para a pequena Helena, o Papai Noel era uma espécie de deus misterioso e benevolente, aguardado com ansiedade a cada Natal. Hoje ela crê que o bom velhinho é apenas uma figura mitológica… Será?

            Helena agora olha o retrato de quando tinha sete anos, a única fotografia de sua infância. Aquela menina loira, doce e travessa, de vestido verde, olha puramente para a senhora de rosto enrugado e cabelos brancos. Uma troca de olhares sem cobrança ou arrependimento, apenas de ternura e saudade.

            Uma lágrima corre pelas rugas de Helena. A neta se aproxima.

            — Está chorando, vovó?

            — Não é nada, querida — diz Helena sorrindo. — A vovó só está ansiosa esperando o Papai Noel.

 

Teodoro

Por  Célia Silva Jachemet

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Aquilo poderia ser considerado um fato comum, numa grande cidade onde acontece de tudo.

O cara embarcou no primeiro ônibus, sem precisar o destino. Como estivesse de folga e a mulher em viagem, tanto se lhe dava sair de carro, de ônibus ou a pé. Para onde suas pernas o levassem é que iria. Queria viver como uma pessoa comum, longe da rotina de altos executivos. Compromissos?! A vida, para ele, era isso: compromissos. Tanta gente e não via ninguém. Também parecia considerar-se invisível como os outros o eram para si. Na verdade, sempre fora sozinho mesmo.

Filhos não tinha. Ao menos que soubesse. E como queria tê-los! Talvez agora tudo fosse diferente. Sua mulher nunca quisera engravidar. O mundo lá fora era mais interessante para ela. Filhos poderiam atrapalhar. Ele sempre respeitou a posição dela, mas muitas vezes pensara que de aventuras fortuitas poderia ter acontecido. Que bobagem! Já era tarde para pensar nisto.

O coletivo dirigia-se para a zona norte e era um sobe e desce constante de pessoas, vozerio, músicas desencontradas. Nada que o interessasse ou lhe chamasse verdadeiramente a atenção. Cruzou a roleta e viu um lugar vago, sem notar que muitos passageiros permaneciam de pé. Considerando-se com muita sorte por poder sentar-se, o fez, sentindo-se à vontade.

Na poltrona ao lado da sua estava uma mala de couro surrada, de tamanho considerável.

Começou então a observar os demais passageiros que o olhavam entre curiosos e indiferentes, mas todos eles, ao descerem, davam uma olhada para a mala. Só o dono dela ainda não se havia manifestado. Notou que as pessoas pareciam mais alegres e arrumadas. Até mais cheirosas.

De repente pareceu-lhe que a mala se mexera. Deduziu ou imaginou que algo roçara em sua perna. Mas ficou impassível. Algum desavisado deixara a mala ali a ocupar o espaço de um passageiro.

Nos bancos à sua frente duas senhoras comentavam as notícias policiais do dia, a crise, o perigo de se andar por aí. Sair? Só por necessidade!

Dizque tão roubando crianças pobres para vender os órgãos.

– Pois é: dizque largam a “mercadoria” em qualquer lugar, para despistar, mas que, de longe, fica sempre alguém cuidando. Eu, se achar algum pacote, por mais atrativo que seja, nem toco. Até ficaria tentada. Com essa crise e precisando comprar os presentes de Natal…

– Pobres dos inocentes! E pensar que tanta gente gostaria de ter um filho, há tantas crianças abandonadas.

Nisto o nosso viajante teve a impressão de sentir de novo o movimento da mala e, perturbado, resolveu saltar do ônibus no próximo ponto.

Caminhou vários quarteirões sem olhar para trás. Tinha a sensação de estar sendo seguido. A cada passo mais forte atrás de si, estremecia.

Uma mão bateu-lhe no ombro. Teve um sobressalto, mas era alguém pedindo fogo para acender o cigarro.

Adiante encontrou um menino de uns cinco anos pedindo esmolas e, sem saber porquê, pegou-o pela mão e o levou consigo. O menino seguia-o sem protestar e o cara parecia sentir-se mais seguro. Porém, a lembrança da mala o perseguia.

Ao virar mais uma esquina, notou que estava em sua própria rua, quase chegando a casa.

Sentiu-se aliviado ao tomar o elevador e indicar o andar ao ascensorista, que o olhou e ao menino, de modo estranho. O garoto seguia-o docilmente e o cara já o havia quase esquecido. Só agora, dentro do elevador, perguntou-se porque o trouxera. Não sabia o que fazer com ele. Dar-lhe-ia algo para comer, alguns trocados e o mandaria embora.

Quando se aproximou da porta do apartamento, enxergou a mala, ali, a sua espera. Teve um sobressalto.

Embaixo, na entrada do prédio, barulho de multidão e som de sirenes.

O menino lá, ao seu lado, aguardava alguma coisa. A mala ali, na frente. Por que o movimento fora do prédio? Por que aquele menino o seguia? O que fazer com ele se nem consigo sabia o que fazer? Meu Deus, a mala do ônibus na sua porta, como podia ser aquilo? Dizem que a noite de Natal era para ter paz, mas que paz era aquela? O quê faria agora com a mala e o menino, com o menino e a mala? O que teriam a ver um com o outro? Chamar a polícia? Mas como explicar aquilo tudo? Como conseguiu a mala chegar ali antes dele? Será que era aquele o motivo das sirenes? Seria aquela a mala que vira no ônibus? _ Ai! Lembrou-se da conversa das duas mulheres no ônibus e estremeceu.

 Resolveu pegar a mala, quando então viu que nela estava o seu endereço e o seu primeiro nome: Alfredo. Pensou que o seu nome parecia nome de mordomo. Se deu conta da presença concreta do menino e perguntou como ele se chamava. O garoto respondeu: _ Teodoro. Chamo-me Teodoro, e só. Nunca conheci meu pai. Minha mãe dizia que tinha um, mas ela também sumiu. Queria ter um pai nesta noite de Natal.

Comovido, Alfredo abriu a porta, pegou a mala e convidou Teodoro para entrar. Permitiria que tomasse um banho e lhe daria uma roupa limpa para vestir, mesmo que nela coubessem três Teodoros daquele tamanho. E decidiu que jantariam juntos. Depois levaria o menino para um abrigo. Daria um jeito.

Resolveu então abrir a mala e surpreendeu-se com o conteúdo. Roupas e brinquedos para menino e um bilhete que dizia: Um presente de Deus. Fique com ele.

Alfredo resolveu voltar sozinho à rua para comprar lanche e sorvete e só então viu o motivo das sirenes, os barulhos e o clima de festa, os foguetes. Era meia noite. A noite de Natal. Voltou ao apartamento e abraçou Teodoro, que seria dali por diante o filho que sempre quisera ter. Não mais questionou porque viera a mala parar na sua porta e porque achara aquele menino. Não precisava mais perguntas nem exame de DNA. O DNA era o do coração, da alma, do amor e da fraternidade. Os dois eram Teodoro um para o outro. Milagre de Natal.

 

Coisas do coração

 Por Tânia Beatriz Schreiber 

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“Fiz um contrato com a noite

O céu sorriu estrelado

Ruas vazias de gente,
Testemunhando desejos

Antecipando teus gestos
Leves, complexos, simples

Em pleno voo noturno

Zona de pura alegria

A solidão sozinha
Corria atrás de mim
Experimentando assim,
Assim…

Hoje,
Hoje é meu dia de gente.
Hoje é proibido dormir
Hoje,
Hoje é meu dia de gente.
Até o amanhecer
Quero estar com você.”

A voz de Paula Toller, do Kid, alegrava a sala naquele final de tarde de dezembro, lá fora uma espessa névoa encobria a casa de aberturas amplas e floreiras pendentes. Vozes masculinas na casa ao lado amontoavam-se na garagem à espera de mais um jogo do campeonato brasileiro. Guerreiros tricolores e colorados esperavam o apito inicial.

        -Ué, por que você voltou tão cedo? O jogo nem começou.

        – Sinto uma dor horrível no peito, falta de ar…

        Ana percebeu que Bento não estava bem, a cor pálida do rosto e o suor gelado mostravam que ele não mentia.

        – Rápido, filha, uma toalha molhada e a garrafa de álcool.

        – Meu Deus, o que está acontecendo, mãe?

        – Teu pai não está bem. Pegue a chave do carro, vamos levá-lo ao hospital, enquanto ligo para o celular do Dr. Zig.

Luca  saiu abraçado ao sogro junto com Helena , enquanto Ana passava a chave na porta e colocava os documentos na bolsa.

        – Pai, por favor, resista – gritava a filha em prantos.

Luís, que estava ali perto, de ouvidos atentos, veio correndo e abraçou o amigo caído, inconsciente, próximo à escada da garagem.

        – Calma aí, companheiro, nosso time nem entrou em campo ainda, você não vai morrer agora.

        Rapidamente pegou o amigo nos braços e carregou-o até o carro. Ana foi atrás, abraçada ao marido, a filha e o genro vinham em um Fiesta com o pisca – alerta pedindo passagem.

         – Doutor, por favor, como ele está?

– Seu marido teve um infarto agudo do miocárdio, o caso dele é muito grave, e nossa equipe está monitorando para que ele não sofra um outro em seguida. Assim que tivermos o resultado de alguns exames, faremos uma angioplastia para desobstrução da artéria, veremos a extensão do problema e se precisaremos encaminhá-lo para uma cirurgia.

– Meu Deus, ele sofreu um infarto? Nunca pensei que…

Dr. Fábio fechou a porta da sala de emergência onde duas enfermeiras assistiam o marido, agora sem a camisa do Inter e as meias brancas. Ela ainda conseguiu ver os muitos fios  ligados ao aparelho que registrava os batimentos cardíacos, antes que a porta se fechasse. Sozinha no corredor, olhou as paredes frias, a porta que separava seu coração aflito do que pedia socorro. Do outro lado estava o homem que conhecera desde menina, lembrou-se dele e do irmão, aos sábados à tarde, pendurados nas bergamoteiras disputando com os sabiás as frutas maduras. Sentia-se zonza e sem rumo.

Era tarde. Pensou em voltar à sala de espera para dar notícias à filha, mas seu coração preferiu ficar ali,  próximo ao de Bento. Ouviu vozes e um vai-vem de pernas levando visitas para o andar de cima, enfermeiras subindo e descendo pelos elevadores, sentiu um cheiro ocre de sangue, queria sair correndo, mas seu corpo e seu pensamento estavam em Bento, e seu coração rezava para que o dele lutasse contra o tempo. Sentia-se vazia, como se tivessem roubado seu sopro de vida, seu herói agora estava abatido, por isso pedia a Deus que não o deixasse partir, ainda não. Buscava entre as rezas mal pronunciadas as lembranças de Helena menina, no colo do pai à hora do café, roubando-lhe pedaços de pão com as mãozinhas inocentes.

Depois tudo mudou, Helena ficou distante, de poucos afetos e raros amigos, cruel em suas verdades e em seus julgamentos. Pai e filha pouco se falavam, na maioria das vezes trocavam farpas, falavam o essencial dentro da rotina dos dias. Ana tornara-se o ponto de equilíbrio da casa, sempre aparando as arestas; compreendia a filha em tudo, em suas atitudes e no fel de suas palavras, mas também entendia aquele homem escondido na dureza da capa que só os humanos vestem. Helena não era a mesma, nem Bento, sabia que o marido amava aquela filha mais que tudo, entretanto não conseguia dizer, a roda-viva da vida o fez assim,  seco por dentro, mais silencioso do que deveria ser.

        -Vamos levar seu marido ao 5º andar, a senhora pode subir pelo elevador.

        Ana estranhou o silêncio e a pouca luz daquele andar. Ouviu a voz do médico e também a de Bento, pensou tratar-se de uma ilusão, mas tinha certeza de que ouvira a voz do marido. Pelo corredor, não sabia quantas vezes recomeçara suas orações, seus pensamentos estavam nas vozes da última sala.

        Eram 3 da manhã, uma enfermeira finalmente saiu do 508, abanou para ela e fez-lhe um sinal positivo. Tudo estava bem.

        Ana caiu num pranto profundo, olhou agradecida para o Menino Jesus que estava num canto da sala, todo enfeitado com laços natalinos e uma estrela dourada na cabeça. Saiu dali às pressas, desceu pelo elevador, dirigiu-se à sala de espera do 1º andar, não viu mais ninguém além da filha, pegou-a pela mão e conduziu-a para onde levaram Bento depois do calvário.(83)

       Helena abriu a porta, viu o pai de olhos fechados, dormindo. Chorou doído no ombro da mãe, depois olhou  para ele, agora frágil, muito diferente daquele herói que a trazia nos ombros quando criança.

       Ana saiu devagar, fechou a porta, deixou pai e filha no silêncio do quarto e no desejo do reencontro, caminhou pelo corredor principal até a janela de vidros transparentes, abriu-a devagarinho e olhou a cidade lá de cima. Um ar gelado soprou-lhe o rosto trazendo o cheiro da madrugada, viu que algumas pessoas ainda transitavam na rua e, sem perceber, sua boca cantarolou baixinho o que seu coração guardava:

      “Hoje,

      Hoje é meu dia de gente.

      Hoje é proibido dormir.

      Até o amanhecer,

      Quero estar com você…”

    

      No céu, uma estrela no seu esplendor brilhava próxima à lua e aguardava, tímida, os primeiros raios de sol.

Os grandes vencedores do Concurso de Contos “O Espírito de Natal em Evidência”  já foram selecionados pela Comissão Julgadora.

Em breve, os contos e os nomes dos vencedores serão divulgados neste blog e na Revista Evidência!

Fique atento!

O Concurso de Contos “O Espírito do Natal em Evidência” está com inscrições prorrogadas até o dia

15 de novembro.

Participe!!!

Envie-nos a sua história de Natal!!!

As inscrições estão abertas para o II Concurso de Contos

“O espírito do Natal em Evidência”!

Os mais belos sentimentos e os mais profundos valores têm, mais uma vez, a oportunidade de serem transfigurados em arte por meio da literatura.

Participe!

Acesse o regulamento abaixo:

Regulamento 2012

Anexo A 2012

Anexo B 2012

Continent, city, country, society:
the choice is never wide and never free.
And here, or there…No. Should we have stayed at home,
wherever that may be?

Elizabeth Bishop

Neste mês de setembro, a seção “Arte é” da Revista Evidência aborda os feitos poéticos da escritora norte-americana Elizabeth Bishop, que deixou, ao longo do século XX, um legado literário repleto de plasticidade  e simbolismo.Viajante do tempo e do espaço, Bishop foi uma mulher solitária e à frente de seu tempo, ultrapassano padrões e preconceitos.

Sua história esteve, por vários anos,  conectada aos espaços brasileiros,  em especial os do Rio de Janeiro, fato que pode ser observado em muitos de seus poemas. Como tradutora, verteu para a língua inglesa poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes.

Dentre suas principais obras, estão North & South (1946), Questions of travel (1965) e Geography III (1976 – livros quetem como matriz comum a preocupação com os espaços íntimos e externos, noturnos e diurnos, imaginários e reais.

Rain towards morning
The great light cage has broken up in the air,
freeing, I think, about a million birds
whose wild ascending shadows will not be back,
and all the wires come falling down.
No cage, no frightening birds; the rain
is brightening now. The face is pale
that tried the puzzle of their prison
and solved it with an unexpected kiss,
whose freckled unsuspected hands alit. 
Elizabeth Bishop

A prosa é o diurno, a poesia é a noite: se alimenta de monstros e símbolos, é a linguagem das trevas e dos abismos. Portanto, não há grande romance que, em última instância, não seja poesia.

Ernesto Sábato

Dentro da arte hispânica, destacamos três grandes nomes que possibilitaram não apenas a internacionalização da literatura argentina, mas, em especial, que revolucionaram as formas de ler e dizer o mundo: Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Ernesto Sábato, o grande escritor da consciência trágica na literatura desse país. Nascido em Rojas, filho de uma família de descendentes italianos, Sábato viveu entre três grandes “eus”: o cientista, o artista plástico e o escritor. Formado pela Faculdade de Ciências Físico-Matemáticas, em Buenos Aires, realizou seus estudos de Doutorado em Paris. A seguir, deixou a ciência para enveredar pelos caminhos da literatura, em especial do romance. A obra que estabelece um marco entre essas duas instâncias – a ciência e a arte – é Nós e o universo(1945), sua primeira publicação.

Escritor entre os grandes nomes da literatura hispânica, Sábato publicou, como ensaísta, uma vasta obra, da qual há destaque para O outro rosto do peronismo (1956), O escritor e seus fantasmas (1963), A cultura na encruzilhada nacional  (1973), Entre a Letra e o Sangue (1988) e A Resistência (2000). Na ficção, há destaque para O túnel (1948), Sobre heróis e tumbas (1961) e Abaddón, o exterminador (1974). Por seus romances, é possível estabelecermos o perfil crítico e tantas vezes sombrio do autor.

Escritor que registrou em palavras os problemas da condição humana, Sábato viu no romance uma forma de resposta e resistência à barbárie a que a civilização está submetida. Viu na literatura a esperança para um mundo feito de homens desprovidos de deuses.

Viajar é sempre um pouco superficial. O escritor de nosso tempo deve afundar na realidade. Viajar deve ser afundar, paradoxalmente, no lugar e nos seres de seu próprio rincão. O resto é coisa de frívolos, de meros cronistas, de snobes. Viajar, sim; mas para ver com perspectiva seu próprio mundo, para nele afundar. Assim como o conhecimento de nós mesmos passa pelos demais, só podemos indagar e conhecer a fundo nossa pátria conhecendo as que não nos pertencem.

Ernesto Sábato, O escritor e seus fantasmas